Trabalhadoras denunciam condições análogas à escravidão no Centro de Rio Branco

E não se trata de meros relatos. Há fotos, vídeos, prints de conversas, áudios de WhatsApp e filmagens que documentam

Há quem pense que a escravidão acabou. Que as correntes ficaram no passado, que o Brasil moderno, constitucional e urbano não tolera mais a servidão. Mas ela ainda existe. Discreta, maquiada de oportunidade, escondida sob o som de máquinas e metas. O novo tronco é o relógio de ponto. O novo chicote é a humilhação.

Caso aconteceu em um estabelecimento no Centro de Rio Branco/Foto: Sergio Vale

Foi numa manhã qualquer, entre uma petição e outra, que duas trabalhadoras bateram à porta do escritório. Voz embargada, olhar baixo, vergonha e medo de falar. Queriam apenas “saber se a patroa podia tratar elas daquela forma”. Mas, conforme os relatos fluíam, o que parecia mais um caso de rotina transformou-se num retrato nauseante do que ainda se comete em nome do “emprego”.

Hoje, já são quatro mulheres dispostas a romper o silêncio. E outras, tantas, já manifestaram o desejo de se reunir para relatar abusos semelhantes. São senhoras entre 50 e 60 anos, mães, avós, mulheres que passaram a vida inteira acreditando que trabalho era sinônimo de dignidade, até descobrirem que, em certos lugares, trabalhar é sinônimo de humilhar-se.

Por respeito às normas do Código de Ética e Disciplina da OAB, não serão expostos nem os nomes das trabalhadoras nem da empresa, ao menos até que o processo esteja sentenciado. A intenção aqui não é linchar, mas alertar. Não é vingar, mas fazer justiça.

E não se trata de meros relatos. Há fotos, vídeos, prints de conversas, áudios de WhatsApp e filmagens que documentam, com precisão cirúrgica, o cotidiano de violências sofridas dentro do ambiente de trabalho. É um vasto arcabouço probatório que desmonta qualquer discurso defensivo de “mal-entendido” ou “exagero”.

Uma delas, aos prantos, contou que foi chamada de “gorda” pela própria empregadora. Outra narrou que não recebiam vale-transporte, sob a justificativa cínica de que isso “as ajudaria a emagrecer”. Durante o almoço, deitavam-se no chão de uma sala mofada, sem colchonete, sem travesseiro, sem dignidade. A comida era feita por elas mesmas, com os poucos ingredientes liberados pela patroa… o restante ficava trancado com cadeado.

Antes mesmo de bater o ponto, eram obrigadas a guardar celulares e bolsas em compartimentos fechados, também com cadeado, sob vigilância constante. E se o ponto fosse registrado com um minuto de atraso, o desconto vinha no contracheque. Conversar com as colegas durante o expediente estava proibido. Beber água era um risco. Ir ao banheiro, um privilégio contado no relógio. E, quando demoravam demais, vinham as piadas, os gritos e as humilhações públicas.

Tudo isso sob o olhar frio de uma empregadora que, ironicamente, vive há mais de três anos fora do Acre, gerindo a fábrica à distância, e pisando aqui esporadicamente, como quem move peças de um tabuleiro. Grita por telefone, exige metas inalcançáveis e cobra resultados de quem já não tem sequer energia para existir.

Mas o que essa senhora parece ignorar é que o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Que o art. 5º, inciso III, veda “tratamento desumano ou degradante”. Que o art. 7º, inciso XXII, assegura a redução dos riscos do trabalho. Que o art. 483, alínea ‘b’, da CLT autoriza a rescisão indireta quando o empregador trata o empregado da maneira com que ela vinha tratando.

E, sobretudo, que o art. 149 do Código Penal define e pune o trabalho análogo à escravidão, abrangendo exatamente o que se apura neste caso: condições degradantes, restrição de liberdade, abuso psicológico e supressão da dignidade.

Como se não bastasse o rol de atrocidades, a própria empresária, após recusar-se a receber as cartas de rescisão indireta, tentou entrar em contato comigo, buscando “explicar” o seu lado, como se fosse possível justificar a humilhação com argumentos contábeis. Mantive a serenidade e fiz uma proposta direta: que ela pagasse os direitos trabalhistas das funcionárias. Nada além do que a lei determina.

Ela recusou. Disse que não faria. E, num ato ainda mais repugnante, passou a entrar em contato diretamente com as ex-funcionárias, tentando convencê-las a ir até a empresa assinar documentos, sob a promessa de que “daria um dinheiro” a elas, dizendo que “advogado só quer ganhar dinheiro” e que poderiam “resolver sem envolver advogado”.

Tentou, em outras palavras, induzir trabalhadoras vulneráveis a assinarem documentos que provavelmente retirariam seus próprios direitos, ou seja, uma tentativa de fraude trabalhista e, por sorte, frustrada: as clientes me procuraram a tempo, e o dano foi evitado.

Essas mulheres não pedem luxo. Pedem respeito. Pedem o direito de sentar-se à mesa, de almoçar dignamente, de não serem ridicularizadas, de não temer o relógio de ponto como se fosse um instrumento de punição.

Estamos falando de vidas humanas, não de engrenagens produtivas. Mulheres que carregam décadas de história e que, por necessidade, aceitaram o inaceitável. E o mais revoltante é que isso não se passa numa fazenda isolada, mas no coração de Rio Branco, sob o disfarce de uma empresa aparentemente “normal”, cercada de avenidas e vizinha de escolas, bancos e igrejas.

Mas desta vez, não haverá silêncio.
Não haverá impunidade.

Com base nas provas reunidas, serão adotadas todas as medidas cabíveis, tanto na Justiça do Trabalho quanto na esfera criminal, e será requerido ao juízo que oficie o Ministério Público do Trabalho e o Ministério do Trabalho e Emprego do Acre para apuração imediata das violações narradas.

Porque o que se busca não é vingança, é justiça.
E a justiça, quando vem, precisa vir inteira: com alma, com lei e com vergonha na cara.

Custe o que custar, a verdade virá à tona.
E quem transformou o trabalho em suplício pagará, no grau da sua culpa, por cada lágrima, cada humilhação e cada cicatriz moral que deixou para trás.

Roraima Rocha é Advogado; sócio fundador do escritório MGR – Maia, Gouveia & Rocha Advogados; Mestrando em Estudos Jurídicos com Ênfase em Direito Internacional; Especialista em Direito Penal e Processual Penal; Especialista em Advocacia Cível; Secretário-Geral Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/AC; Membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB.