Notas sobre Frankenstein

É por inveja do poder divino que os homens oprimem as mulheres. Considerando que, dentre todas as nomenclaturas desenvolvidas para um ser todo-poderoso, uma das mais populares é o “Criador”, basta olharmos as diferenças biológicas entre homens e mulheres para identificarmos qual dos dois mais se aproxima da figura celestial. É a mulher que transforma um óvulo fecundado em um ser vivo, que o desenvolve, nutre e eventualmente expulsa — assim como teria sido com Adão e Eva, saídos do Éden. (Se as referências bíblicas não forem suficientes, vale dizer que este artigo lida com arquétipos tradicionais de gênero e de fertilidade.)

Tudo bem questionar esta ideia apelando para a existência do mísero espermatozoide. Tal recurso, porém, seria equacionar o Criador com o barro que Ele colheu para criar. Bancos de esperma existem há mais de sessenta anos, tornando desnecessária à mulher qualquer presença masculina para que ela gere vida — ou melhor, reduzindo-o a uma contribuição microscópica. Só que o recíproco não é verdadeiro: bancos de óvulos ou úteros industriais estão além do que somos capazes. Mesmo um óvulo fecundado em laboratório precisa de um útero feminino para se desenvolver. Não é à toa que o maior foco de controle opressivo exercido sobre mulheres, mundo afora, se concentra no sistema reprodutivo. A inveja não age só dentro da pessoa; ela explode para coibir o uso do poder que é cobiçado.

Essa opressão vem do ranço. Não importa quantas estruturas construir, quantas montanhas escalar ou quantas batalhas vencer, o homem não alcançará o poder que qualquer mulher contém de nascença. Talvez por isso seja ele tão dedicado à destruição. Fabricou a bomba atômica e nivelou Hiroshima. Não bastante, obliterou Nagasaki. O poder bélico de hoje acabaria com a humanidade várias vezes. Se o oposto da criação é a destruição, esta o homem tem na palma da mão.

Por aí chegamos ao Dr. Victor Frankenstein, o primeiro homem a criar vida dentro de seu laboratório. Costurando pedaços de cadáveres separados e zapeando o conjunto com eletricidade — transformando destruição em criação —, dá vida a um ser que todos chamam de monstro. Desprovido de um nome próprio, a criatura passa grande parte da obra em busca de quem o criou. De um pai arrependido, como um Deus que vê somente o erro de sua criação. É o primeiro livro de ficção científica da história, alvo constante de adaptações e dramatizações. Um aviso forte, escrito por uma mulher.

Mary Shelley, seu marido, Percy Shelley, Lord Byron e John Polidori, trancafiados em uma mansão na Suíça devido ao mau tempo, fizeram uma brincadeira para ver quem escreveria o melhor conto fantasmagórico. Competição brutal, já que Percy e Byron eram dois dos maiores autores de língua inglesa do século 19. Em um típico verão, tal brincadeira nem aconteceria — só que, em junho de 1816, o mundo ainda sofria as consequências de duas erupções vulcânicas no sudeste asiático: um inverno duradouro que causou prejuízo à agricultura e fome ao redor do globo. A história vencedora veio de Mary, à época com dezenove anos.

Mary Shelley nasceu na Inglaterra em 1797. Seu pai foi William Godwin, jornalista e filósofo um tanto interessado em desmantelar as estruturas sociais da época (era um anarquista radical). Sua mãe, Mary Wollstonecraft, autora e filósofa mais conhecida por seu ativismo em busca de direitos para as mulheres, morreu onze dias após o nascimento de Mary, por complicações no parto. Frankenstein foi escrito pela filha de filósofos, órfã de uma mãe que nunca conheceu, casada com um dos escritores mais famosos de seu tempo. Como subtítulo, ela adicionou: “O Prometeu moderno”. É uma referência a um mito grego, o ser que criou a humanidade do barro e depois roubou o fogo dos deuses para repassar aos homens. Como punição, Zeus o acorrentou a uma montanha, onde uma águia passa a eternidade bicando e comendo seu fígado.

Em 2025, Guillermo del Toro, cineasta mexicano vencedor de vários Oscars, lança sua versão da história — um filme que ele sonhou em fazer durante a vida inteira. Del Toro altera a narrativa para seguir seus instintos próprios e explorar questões de seu interesse pessoal. Gótico em vez de romântico, o roteiro se preocupa mais com o que Victor Frankenstein deve à sua criação do que com o fato de ele ter tentado “derrotar a morte”. Logo no início, quando o cientista demonstra suas primeiras experimentações a um corpo docente, é repreendido com força: Victor não deveria tentar “brincar de ser Deus”. O vínculo entre esse comentário e o poder que o homem não tem, mas cobiça, é o tema deste artigo. Para quem presta atenção nos personagens da trama, é notável o destino de cada mulher envolvida com Frankenstein.

A mudança mais notável na obra de Del Toro é a humanização de seu monstro como um ser sensível, merecedor de sua existência. Mary Shelley não deixava de descrevê-lo, sempre que podia, como “monstruoso”, com pele amarelada e lábios escuros — mas o cineasta lhe dá uma pele clara, que evoca o mármore usado na época renascentista. Um monumento do homem para o homem. Victor tenta destruir sua escultura de todas as maneiras possíveis, ficando mais monstruoso a cada virada narrativa da história, em contraponto ao Monstro, cada vez mais humano. Só que não importa o que aconteça com ele: mesmo com as quedas, as lutas e os tiros que sofre, a vida do Monstro persiste. Depois que sua vida foi criada, ela se recusa a desaparecer.

Talvez seja essa questão a mesma que ronda a onda atual de Inteligência Artificial: a ideia de que, para pegar emprestada uma expressão americana, depois que o gênio sai da lâmpada, ninguém consegue colocá-lo de volta lá dentro. Neste jovem século, a busca pelo “poder de Deus” deixou de ser biológica e virou tecnológica. É, até o momento, a melhor chance de criação sem a necessidade daquela metade da população humana que já consegue gerar vida. A metáfora continua se considerarmos que um dos gastos mais notáveis do delírio da IA é o impacto na matriz de energia que a tecnologia vem causando. Blecautes e falta de água rondam as cidades vizinhas aos data centers recém-construídos.

Nas dez maiores companhias de IA — Nvidia, Microsoft, Alphabet, Amazon, Apple, Meta, OpenAI, Databricks, Anthropic e Tesla —, todos os CEOs são homens. É deles a corrida pela criação tecnológica, a nova busca para derrotar a morte. Ainda é cedo para dizer o rumo que tudo isso vai tomar. A atual euforia se expande e se replica, mas o que os Sam Altmans e Elon Musks da vida não se lembram é o aviso soado por Mary Shelley: o nome da vida criada por eles, a vida nascida do homem, é monstro.