Fronteira Cerrado: desigualdade no acesso ao Estado agrava conflitos

Os conflitos agrários no Cerrado são alimentados pela lentidão do Judiciário, por autorizações do Estado para desmatar áreas ainda em disputa, além da dificuldade no acesso à Justiça por parte de povos e comunidades tradicionais. Esses são alguns dos fatores apontados por agricultores familiares, especialistas e juízes do estado com mais disputas por terra no país: o Maranhão.

Essa é a terceira reportagem da série especial Fronteira Cerrado, da Radioagência Nacional, que investiga como o avanço do desmatamento no bioma, atrelado ao agronegócio, afeta os recursos hídricos do país. Todos os dias desta semana, confira um conteúdo novo pela manhã.

Em Balsas, um dos epicentros do agronegócio e segundo município que mais desmata no país, agricultores familiares ameaçados por pessoas que eles apontam como grileiros reclamam de falta de apoio.

Sem recursos para contratar advogado, a distância do centro urbano contribui para prejudicar o acesso à Justiça e à Defensoria Pública. A presidente da Associação Camponesa do Maranhão, Francisca Vieira Paz, afirmou que o Estado é omisso.

“Nós temos casos extremos em que essas pessoas perdem a vida, mas a violência no campo não é combatida. Hoje, os movimentos sociais e pastorais sociais são a última barreira de proteção desses povos. Eles defendem o pouco que ainda existe do bioma Cerrado”.

Francisca acrescenta que o Judiciário não dá resposta no tempo preciso e, enquanto isso, a soja, o milho, o algodão ou o gado avançam sobre os territórios em disputa.

O juiz Delvan Tavares, titular da Vara Agrária de Imperatriz, que atende Balsas, reconhece que a resposta da Justiça às vezes é lenta. O magistrado disse que é difícil verificar a consistência de documentos cartoriais, que nem sempre são confiáveis, e citou o caso de uma área grilada que desmatou o Cerrado próximo a comunidade tradicional com 200 famílias.

“Com essas ações cartoriais, uma pessoa conseguiu grilar, no papel, 500 hectares de terra. Logo em seguida, ele consegue uma autorização de supressão de vegetação, um financiamento de um banco oficial e destrói uma parte significativa do Cerrado”.

Mas o juiz aponta que as autorizações para desmatar o Cerrado em áreas ainda em discuta entre fazendeiros e comunidades e povos tradicionais está na raiz dos conflitos agrários do Maranhão.

“Essa crise, esse fenômeno, está muito mais relacionado a autorizações indiscriminadas de órgãos de proteção ambiental do que propriamente da morosidade da Justiça. Porque essas pessoas, grileiras ou não, proprietários legítimos ou não, elas, para devastarem essas áreas, normalmente contam com autorização dos órgãos de proteção ambiental”.

A Secretaria do Meio Ambiente do Maranhão sustentou que todas as autorizações são emitidas seguindo a legislação e de forma técnica.

O coordenador do Comitê de Solidariedade à Luta pela Terra do Maranhão, o juiz aposentado Jorge Moreno, confirma o relato dos posseiros. Para ele, a pouca educação formal, a falta de recursos para advogados e dificuldade em acessar os cartórios contribuem para prejudicar o direito à terra das comunidades tradicionais do Cerrado. Mas ele adiciona outro elemento ao problema: a ideologia dos juízes.

“Eles olham as comunidades tradicionais como com certo atraso cultural, atraso que não gera emprego, as pessoas vivem de subsistência, elas não têm grande produção. Então, para que vai ter terra? A segunda coisa é a classe social: os juízes, em grande parte, em alguns estados, são vinculados a produtores rurais”. 

Pesquisas da Universidade Federal do Pará (UFPA) têm destacado o papel da grilagem no processo de abertura de novas áreas de desmatamento. O professor da instituição, Danilo Araújo Fernandes, argumentou que a grilagem, ao baixar o preço da terra, torna lucrativa a abertura de novas áreas para a produção agrícola.

“Uma das grandes dificuldades que nós temos de frear essa expansão é a grilagem de terra. O que faz esse setor expandir não é exatamente o fato dele ser improdutivo e, portanto, precisar de mais terra. É porque o preço da terra é baixo nessas áreas de fronteira. Então mesmo setores com baixa produtividade conseguem ter rentabilidade enquanto o preço for baixo. E por que o preço é baixo? Porque estão em aberto, ainda, os processos de grilagem”.

Procurada para falar da dificuldade de acesso dos povos tradicionais do Cerrado ao atendimento, a Defensoria Pública do Maranhão informou que possui o Núcleo Regional de Balsas para defender comunidades vulneráveis afetadas por conflitos fundiários ou problemas socioambientais.

Ouça e baixe as outras reportagens da série Fronteira Cerrado:

  1. O coração hídrico do Brasil sob ameaça
  2. Ativistas querem bioma “igualado” à Amazônia
  3. Desmatamento está ligado a conflitos e grilagem

*Com produção de Beatriz Evaristo e sonoplastia de Jailton Sodré

**A produção dessa série foi viabilizada a partir da Seleção de Reportagens Nádia Franco, iniciativa da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) que destinou R$ 200 mil para o custeio de conteúdos especiais produzidos por jornalistas da empresa.

***O Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) custeou as passagens áreas da equipe até Imperatriz (MA).