No meio da imensidão verde de Xapuri, município distante cerca de 187 quilômetros da capital acreana, Rio Branco, o som da faca sangrando o tronco da seringueira ainda ecoa como parte da rotina. É dali que sai o látex que se transforma em borracha, sustento e símbolo de resistência. A Reserva Extrativista Chico Mendes, criada há mais de três décadas, é o lar da família Mendes, herdeira de uma história que une trabalho, luta e preservação ambiental.

Raimundão, Rogério e José unem três gerações de história no extrativismo | Foto: Suene Almeida
Raimundo Mendes de Barros, conhecido como Raimundão, primo do líder seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988, é hoje um dos guardiões da floresta. Com fala mansa e olhar firme, ele lembra que a reserva foi “a reforma agrária do extrativismo”, uma conquista de quem sempre viveu da mata.
Aos 80 anos, o seringueiro Raimundão Mendes mantém viva a memória de seu primo | Foto: Suene Almeida
“O Chico, junto com nós e os demais que já não são mais vivos, construiu um legado muito importante, que foi a criação da reserva extrativista, que hoje leva o seu nome. Isso, para nós, foi um dos feitos mais importantes da sua luta. Nós estamos com 36 anos após o seu assassinato, e, com o passar dos anos, a população jovem, que não participou dessa luta pela construção da reserva, tem uma outra visão. Eu vou continuar fazendo, porque a nossa reserva precisa continuar existindo, não só pela questão da nossa sobrevivência, mas pelo zelo do legado do companheiro. E também como contribuição para a Amazônia, porque a reserva, nós sabemos, tem um papel importante no que se refere à questão climática. A reserva é quase um milhão de hectares; um milhão de florestas tem um significado muito importante”, destaca.
Viver da floresta e para a floresta
Aos 80 anos, Raimundão fala com orgulho de seu papel e do compromisso com o futuro. Mesmo enfrentando dias difíceis, em meio a ameaças sofridas após operações realizadas na Resex, em junho deste ano, com o intuito de coibir crimes ambientais, ele não pensa em desistir de dar continuidade ao seu legado no extrativismo.
O ambientalista foi alvo de ameaças após recentes operações dentro da reserva | Foto: Suene Almeida
“Eu estou vivendo dias bastante delicados, mas eu não renuncio à luta. Foi aqui que eu nasci, foi aqui que eu me criei, foi aqui que eu criei meus filhos. É aqui que nós construímos o direito de permanecer na nossa floresta, sem mais viver sendo expulsos pelo latifúndio, como aconteceu no passado. Eu me sinto muito à vontade para entregar o bastão para o meu filho, ou os meus filhos. Quem está dentro da floresta comigo é o Rogério, não só ele, mas também meu neto, o José, que tem tudo para ser um extrativista de muita responsabilidade, com amor e com dedicação. E esse é o legado que Chico, junto com nós, criamos, que é a Reserva Extrativista Chico Mendes”, declara.
Pai e filho atualmente vivem na reserva e tem como principal atividade o extrativismo | Foto: Suene Almeida
Apoio do Estado e novos caminhos para o extrativismo
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Acre produziu cerca de 770 toneladas de borracha em 2024, movimentando aproximadamente R$ 15 milhões. No entanto, os desafios de quem vive do látex vão além da coleta. Durante anos, o pagamento do subsídio da borracha [benefício do Governo do Estado direcionado aos extrativistas], regulamentado pela Lei Estadual nº 1.277, de 1999, tem enfrentado atrasos e burocracias.
No estado do Acre principal tipo de borracha comercializada é a borracha natural, extraída da seringueira | Foto: Suene Almeida
Segundo o secretário de Agricultura, José Luis Tchê, essa realidade começou a mudar com a implementação do Decreto nº 11.564/2024, que desburocratiza o pagamento da subvenção da borracha, prevista na Lei Estadual nº 1.277, de 1999. Pela primeira vez, extrativistas do Acre começaram a receber a subvenção diretamente em suas contas.
De acordo com o secretário Luis Tchê, a desburocratização da subvenção dá mais segurança aos produtores | Foto: Gabriel Bader
“Nós estamos regularizando para poder colocar em dia. Então, o nosso produtor e a nossa produtora procurem o banco, não na conta pessoal, mas sim em uma conta social, e digam: ‘Olha, eu tenho uma conta social, tenho um subsídio para receber’. Eu tenho certeza de que já vai estar lá na conta”, orienta.
A borracha abastece cooperativas locais e chega até marcas internacionais que valorizam a origem e a sustentabilidade do produto. Todo o processo, desde a coleta até o beneficiamento, é realizado com responsabilidade ambiental, garantindo que o trabalho dos extrativistas ajude a manter a floresta viva e produtiva.
Resistência, memória e futuro
Entre os filhos de Raimundão, Rogério Mendes é quem herdou o bastão da luta. Ele cresceu aprendendo o valor da floresta com o pai e hoje ajuda a manter viva a tradição seringueira.
Desde cedo Rogério aprendeu a tirar da floresta a matéria-prima para seu sustento | Foto: Gabriel Bader
“Eu cheguei aqui com 11 anos de idade, vindo da cidade. No começo foi um choque, mas com o tempo percebi o quanto era importante estar aqui dentro. A gente quer viver aqui dentro da floresta, viver com a nossa floresta em pé, criando modos de economia sustentável para a gente poder sobreviver. Quem vive da floresta sabe que não é fácil. A gente precisa ter união entre os moradores aqui da Resex para que a gente possa construir pautas e consiga se desenvolver. Hoje, a Resex foi criada em legado e memória do Chico Mendes, e a gente tem de levar essa luta até o fim”, enfatiza.
O Ateliê gera renda para famílias da reserva Chico Mendes por meio da sustentabilidade | Foto: Suene Almeida
Rogério entende que o extrativismo é mais do que uma forma de trabalho. Com os pés firmes e o olhar voltado para o futuro, ele também sonha com novos caminhos sustentáveis.
“A gente vê esse modo que a gente tem; a maioria das pessoas que moram na Resex vive do extrativismo. A gente tem como foco principal a castanha e a borracha, mas pode agregar outros produtos. Como é um exemplo aqui na nossa comunidade, o Ateliê da Floresta, onde a gente aproveita resíduos, árvores que estão mortas há 40 ou 50 anos, faz a colheita dessas árvores, traz para o ateliê e transforma em arte. Todo mundo já sabe da importância que é defender a floresta. Então, a gente precisa que as pessoas que estão à frente do nosso estado venham conhecer o nosso território e desenvolver oportunidades que possam gerar renda, porque hoje há várias formas de ganhar dinheiro com a nossa floresta”, aponta.
A atividade extrativista vai muito além de uma tradição cultural, ela é também uma importante fonte de renda para inúmeras famílias em todo o estado do Acre. Entre seringueiras e caminhos, a história da família Mendes mostra que a Amazônia pode gerar riqueza sem abrir mão da preservação, tendo na borracha não apenas uma matéria-prima, mas um símbolo de resistência e sustentabilidade.