É isso mesmo que você leu! Mais de mil pessoas presas por tráfico de drogas no Acre poderiam estar em liberdade hoje, se a lei fosse aplicada corretamente. O dado não é invenção de ativista, nem de “defensor de bandido”: está no estudo oficial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicado em maio de 2025. A Justiça reconhece que pequenos traficantes ocasionais, primários, sem antecedentes e fora de facções, têm direito à redução de pena prevista no artigo 33, §4º, da Lei de Drogas. Mas no Acre, esse direito é sistematicamente negado. Enquanto a média nacional de reconhecimento do chamado tráfico privilegiado é de 26,1%, no nosso estado o índice despenca para apenas 19,2%.
O tráfico privilegiado foi introduzido na Lei nº 11.343 de 2006 (Lei de Drogas) justamente para diferenciar o grande traficante do pequeno vendedor ou usuário que, em situações de vulnerabilidade, acaba sendo enquadrado no artigo 33. Ele prevê a redução da pena de um sexto a dois terços quando o réu é primário, de bons antecedentes, não se dedica à atividade criminosa e não integra organização criminosa. O Supremo Tribunal Federal, em 2023, consolidou esse entendimento na Súmula Vinculante nº 59, estabelecendo que, reconhecido o tráfico privilegiado, a pena deve ser substituída por restritivas de direitos e o regime deve ser aberto. Em outras palavras: se o réu preenche os requisitos, não deveria estar atrás das grades.
Muitos réus primários no Acre continuam encarcerados apesar do direito ao tráfico privilegiado e decisões recentes do STF/Foto: Reprodução/Ilustrativa
O levantamento do CNJ, feito com base no Sistema Eletrônico de Execução Unificado, apontou que o Brasil possui cerca de 370 mil condenados por tráfico e que apenas 96,7 mil, o equivalente a 26,1%, receberam o benefício do tráfico privilegiado. No Acre, dos 5.408 condenados, apenas 1.039 tiveram o benefício reconhecido. Se a média nacional fosse aplicada, cerca de 375 pessoas a mais estariam hoje fora do cárcere. E não se trata de grandes traficantes, mas de réus primários, presos com pequenas quantidades, que jamais deveriam estar no sistema prisional.
A situação se torna ainda mais grave com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 635.659, Tema 506 da repercussão geral, de 2024. A Corte decidiu que o porte de até 40 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas deve ser considerado para uso pessoal. Nesses casos, não há crime, mas mera infração administrativa. O fundamento foi claro: criminalizar o usuário viola os direitos fundamentais à intimidade e à vida privada, previstos no artigo 5º da Constituição. Isso significa que milhares de pessoas presas como “traficantes” sequer deveriam estar sendo processadas, pois carregavam quantidades compatíveis com consumo próprio.
No Acre, onde a aplicação do parágrafo quarto é ainda mais restrita que no resto do país, a decisão do STF deve ter efeito devastador sobre o sistema prisional: centenas de processos podem ser revistos, reduzindo penas ou extinguindo condenações inteiras. Manter essas pessoas presas não é apenas uma injustiça, mas também um fardo para as famílias, um desperdício de recursos públicos e um combustível para o fortalecimento de facções, que se alimentam justamente da massa carcerária formada por jovens pobres e usuários de drogas.
O CNJ mostrou os números. O STF deu a interpretação. Mas nada disso tem efeito automático. O Estado não irá, por iniciativa própria, abrir as portas das celas. É preciso que familiares e interessados acionem a Justiça para revisar os processos, pedir o reconhecimento do tráfico privilegiado ou a reclassificação para uso pessoal.
Mais de mil pessoas no Acre poderiam estar livres agora, mas continuam presas porque o sistema insiste em aplicar a lei de forma restritiva, seletiva e punitivista. O que o STF e o CNJ revelam é simples: há um abismo entre o direito que existe no papel e a realidade das prisões. Por isso, quem tem um familiar ou amigo nessa situação precisa se mexer. Não é esperar pelo Ministério Público ou pelo juiz. O sistema não age sozinho (apesar de que deveria). É necessário buscar os próprios direitos, com a ajuda de advogados criminalistas especialistas, de confiança pessoal ou reconhecidos pela credibilidade entre juristas. Só assim será possível transformar decisão judicial e lei em liberdade concreta.
*Roraima Rocha é Advogado; sócio fundador do escritório MGR – Maia, Gouveia & Rocha Advogados; Mestrando em Estudos Jurídicos com Ênfase em Direito Internacional; Especialista em Direito Penal e Processual Penal; Especialista em Advocacia Cível; Membro da Comissão de Prerrogativas, Secretário-Geral Tribunal de Ética e Disciplina – TED, e Presidente da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/AC; e membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB.
