A campanha Setembro Verde reforça a importância da inclusão das pessoas com deficiência (PcD) em todos os espaços. Nesse contexto, está a Cultura Def, termo que define a produção artística criada por PcDs, marcada por metodologias, estéticas e formas de expressão próprias.
“É a cultura produzida por pessoas com deficiência, mas numa perspectiva do seu modo de estar, de viver e vivenciar o mundo. A cultura DEF só pode ser produzida por corpos com eficiência, então ela vem a partir dessa vivência, dessa perspectiva de mundo”, explica Aline Zeymer, coordenadora de Acessibilidade Cultural no Ministério da Cultura.
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João Maia
Reprodução/Instagram
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Daniela Caburro
Acervo pessoal
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Samuel Henrique ‘Samuka’
Hugo Barreto/Metrópoles
Essa diversidade aparece em diferentes linguagens, da dança à fotografia, das artes plásticas à música, sempre expandindo a forma de produzir cultura.
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Fotografia cega
No silêncio das partidas de goalball, esporte paralímpico em que os atletas se orientam pelo som da bola, João Maia rodeia as quadras com sua câmera fotográfica. Guiado por vibrações, ruídos e pela comunicação entre jogadores, ele transforma as percepções em fotografia. “Eu digo que transformo sons em imagens”, resume o artista.
O piauiense foi o primeiro fotógrafo cego a registrar uma Paralimpíada, em 2016, no Rio. Depois, também cobriu os Jogos de Tóquio (2021) e Paris (2024). Para captar os cliques, conta com um assistente que auxilia na locomoção e nos ajustes técnicos, mas reforça: “Quem faz e dá o show nos cliques sou eu, né?”, brinca.
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Goalball feminino
João Maia/Divulgação
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Elizabeth Gomes
João Maia/Divulgação
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Goalball masculino
João Maia/Divulgação
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Vinicius Bellator
João Maia/Divulgação
Desde criança, João se encantava com a fotografia. Na adolescência, ganhou uma câmera do irmão e nunca mais largou a arte. Mesmo após perder a visão aos 28 anos, por causa de uma uveíte bilateral, seguiu registrando o mundo.
“Eu acreditava que eu não poderia mais fotografar, porque a visão é um dos nossos mais importantes sentidos, mas eu descobri que sim”, lembra. “Eu não deixei de fotografar, porque eu acreditei que poderia usar as minhas percepções, a olfativa, a auditiva, o tato, o paladar.”
Hoje, aos 51 anos, o profissional ministra oficinas pelo projeto Fotografia Cega, no qual alunos com deficiência ou não experimentam clicar vendados ou no escuro. Suas obras estão em exposição na Unibes Cultural, em São Paulo, até 19 de outubro. Ele também lançou o livro As Histórias de João Maia.
“A arte é para todos e a gente tem que ocupar os espaços públicos ou privados”, aconselha. “Vá ao teatro, ao cinema, a exposições fotográficas. Porque assim, você vai estar ocupando os espaços e exigindo que esses locais tenham acessibilidade.”
Pintura com a boca
As telas de Daniela Caburro carregam cores intensas e sentimentos profundos. O que mais surpreende, porém, é a técnica: a artista plástica de 53 anos pinta com a boca. “Eu já fui premiada com quadros que as pessoas não sabiam que eram pintados com a boca”, conta.

Natural de São Carlos (SP), Daniela transforma cada obra em um reflexo de sua trajetória. A paixão pela pintura surgiu na adolescência, quando começou a trabalhar com tecidos. Foi a professora Mara Toledo quem lhe deu o primeiro curso formal, ensinando o básico da pintura. “Eu não tinha como pagar um curso de jeito nenhum e muito menos como chegar até um atelier, por causa da condução mesmo”, lembra.
Desde então, ela não parou mais. Em 2004, a artista passou a integrar a Associação dos Pintores com a Boca e os Pés, que reúne 57 artistas só no Brasil. Hoje, a venda das telas garante sua autonomia e uma casa adaptada.
“A arte na minha vida sempre foi um grande sonho”, diz. “A pessoa com deficiência, ele não quer ser o coitadinho, ele quer oportunidade, como todos nós.”

Daniela também faz apresentações ao vivo e já ministrou cursos para outras pessoas com deficiência. Pinta com tanta intensidade que sente nos quadros movimentos que, no dia a dia, não consegue realizar.
“Quando eu estou pintando uma bailarina, eu me sinto bailando com ela. Se eu estou pintando um cavalo cavalgando, parece que eu estou cavalgando com ele”, reflete.
Tetraplégica desde os oito meses, em razão da poliomielite, Daniela encara a condição com leveza. “Não é que a danada roubou todos os meus movimentos, mas não os meus sonhos?!”, brinca.
Breaking
O público se levantou em aplausos quando Samuel Henrique, de 28 anos, apresentou sua performance de breakdance no palco do America’s Got Talent, em 2024. A energia, a técnica e a criatividade do brasileiro conquistaram jurados e plateia. Desde então, Samuka, como é conhecido, viaja o mundo com o grupo Ill-Abilities e participa de competições internacionais.

Os movimentos complexos — giros, saltos e equilíbrios — são feitos com uma perna. Aos 13 anos, após ser diagnosticado com câncer, o dançarino precisou passar por uma amputação. Ainda assim, a dança, que já fazia parte de sua vida desde os 10 anos, em um projeto social no Recanto das Emas (DF), não saiu do seu caminho.
Após o programa de TV, a emoção foi ainda maior quando Samuka recebeu o elogio de Terry Crews, ator e um de seus ídolos, que compartilhou o vídeo da apresentação. “Foi surreal, já era muito fã dele e só de estar no programa eu já estava super realizado”, contou ao Metrópoles em 2024.
Samuka também fala sobre a importância de referências. Para ele, uma inspiração foi o japonês Tommy Guns, dançarino de break que também se apresenta com uma perna. “Segue o seu sonho, levanta a cabeça independente da situação”, reflete. Ao encontrá-lo em uma premiação no Japão, fez questão de agradecer pessoalmente pela motivação.
“Algumas pessoas falam que eu perdi a perna, mas na verdade eu ganhei asas. Então é isso, valorizar. Assim como eu tive um incentivo, alguém que foi referência para mim no passado”, declarou.
Artistas com deficiência no Brasil
Segundo o IBGE, o Brasil tem 14,4 milhões de pessoas com deficiência, 7,3% da população com dois anos ou mais. Em 2025, o Ministério da Cultura e a Universidade Federal da Bahia (UFBA) lançaram o Mapeamento Acessa Mais, primeiro levantamento nacional sobre artistas PcDs. Foram 3.498 cadastros, entre artistas e agentes culturais.
Os dados mostram que 12,4% dos respondentes atuam com música, 10,7% com artes plásticas, 10,7% com dança e 10,4% com audiovisual e fotografia.
Embora a iniciativa represente um avanço, a adesão foi considerada baixa. “Apesar do site ter sido completamente acessível para cadastro, a gente sabe da dificuldade de divulgação e de engajamento de projetos voltados para pessoas com deficiência”, afirma Aline Zeymer.
Entre os agentes culturais cadastrados, apenas 20% têm deficiência. A maioria atua como consultor cultural, mas Aline destaca que é preciso ampliar a participação dessas pessoas em diferentes funções, principalmente no campo da acessibilidade cultural.
“O mais urgente seria a cultura do acesso, é uma mudança realmente de cultura da sociedade. O acesso é uma coisa indispensável, tem que ser pensado desde o início, seja na cultura ou em qualquer outro lugar. É a acessibilidade como premissa, é o acesso como premissa em todos os lugares, em todos os horários”, ressalta.