Algumas cenas dispensam roteiristas. Pedro Almodóvar, cineasta espanhol mestre em criar enredos onde a realidade beira o absurdo, certamente se inspiraria em um episódio recente da política brasileira. Jair Bolsonaro, deitado em uma UTI, cercado por tubos, monitores e claro, câmeras, protagonizou mais um capítulo da sua incansável presença de palco. Entre uma live e outra, recebeu a visita de uma oficial de justiça com uma intimação em mãos. Indignado, lançou sua frase de efeito: “A senhora tem ciência de que está em uma UTI?”. A cena não precisava de edição.
Rapidamente, a defesa do ex-presidente correu ao Supremo Tribunal Federal para gritar ao mundo jurídico: isso é ilegal! Alegam que um ato processual não poderia ser praticado em ambiente hospitalar, ainda mais em uma UTI, pois violaria a integridade física e psicológica do paciente (Art. 244 do Código de Processo Civil). O problema? O paciente em questão vinha, dias antes, discursando com entusiasmo em transmissões ao vivo, analisando o cenário político com fôlego suficiente para qualquer debate. Diante desse embate entre a encenação e o processo, vale uma pausa para explicar ao amigo eleitor, ops, digo, ao amigo leitor, o que de fato distingue citação, intimação e notificação.
Citação é o início do jogo. No processo, ninguém participa por acaso. A citação é o ato formal que comunica a alguém que está sendo processado. No Direito Penal, é a partir desse momento que o réu toma ciência da acusação e pode exercer sua defesa. É como ser oficialmente convocado para a partida, não para assistir, mas para jogar. Sem citação, o processo sequer começa de verdade, porque o réu tem o direito de saber e responder.
Intimação é o cronograma. Uma vez citado, o réu, ou qualquer outra parte, precisa ser informado sobre os próximos passos: audiências, decisões, atos que exigem sua presença ou ciência. A intimação cumpre esse papel. É como receber o lembrete da agenda, “compareça à audiência no dia tal” ou “leia a decisão que saiu agora”.
Notificação é um aviso externo. Não confunda com os outros dois. A notificação é usada, em regra, fora do processo judicial, para comunicar alguém sobre determinado fato ou situação. Um condomínio notifica um morador barulhento, uma empresa notifica um cliente inadimplente. É um alerta, uma tentativa civilizada de resolver conflitos sem necessariamente judicializar.
Feitas as apresentações, retornemos ao hospital, onde Bolsonaro, alternando entre paciente e influenciador digital, foi intimado no leito da UTI. A defesa alega que isso violaria sua integridade, mas esquece o detalhe incômodo: o próprio ex-presidente, entre as doses de soro, se mantinha ativo em lives e entrevistas, com o vigor de quem está pronto para o embate político. E é nesse momento que o Direito, por mais que tentem vesti-lo com os trajes da dramaturgia, volta à cena com seu pragmatismo.
O processo não existe para alimentar espetáculos. Existe para garantir direitos e aplicar a Justiça. O Princípio da Instrumentalidade das Formas, esse velho conhecido dos juristas, ensina que os rituais do processo só têm valor se servem para proteger direitos. O latim, sempre elegante e útil nessas horas, resume: pas de nullité sans grief. Não há nulidade sem prejuízo.
Se o ato de intimação foi entendido, se não causou dano algum à defesa, se o réu estava em plena capacidade de compreender o que se passava, e convenhamos, participar de lives já é meio caminho andado para isso, não há o que anular. O Direito não é feito para encenar. Ele respeita os ritos, mas não se curva ao espetáculo.
No fim, o que temos não é uma crise jurídica, mas uma tentativa de criar uma narrativa. A defesa tentou pintar um quadro onde Bolsonaro era apenas um paciente indefeso, perturbado em seu repouso. Mas o próprio Bolsonaro, com suas aparições digitais, insiste em mostrar o contrário. O processo, ao contrário da política, não se sustenta em discursos ou emoções, mas em fatos. E, nesse cenário, não houve nada além de mais uma tentativa de transformar uma intimação em manchete.
*Roraima Rocha é Advogado; sócio fundador do escritório MGR – Maia, Gouveia & Rocha Advogados; Mestrando em Legal Studies Emphasis in International Law (Must University – EUA); Especialista em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade Gran); Especialista em Advocacia Cível (Fundação do Ministério Público do Rio Grande do Sul – FMP); Membro da Comissão de Prerrogativas, Secretário-Geral Tribunal de Ética e Disciplina – TED, e Presidente da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/AC.
